Você já ouviu uma música mal equalizada? Parece que alguém está cantando dentro de um cano. Ou com a bateria tão alta que nem se ouve as vozes. O som do teclado está murcho, sem peso. Falta de equilíbrio entre os instrumentos, equalização ruim. Em resumo, uma experiência desagradável.
A mensagem transmitida pela música nas igrejas do Brasil está mal equalizada. Não há equilíbrio. Sobram algumas visões enquanto outras desapareceram. Vamos observar três ajustes que se fazem necessários quando pensamos não na qualidade do áudio, mas na qualidade da mensagem: a direção, a quantidade e a cultura.
A direção – para cima ou para baixo
O primeiro ajuste está associado à direção da música que é cantada. As letras das músicas hoje refletem quase exclusivamente o que Deus fez e pode fazer por nós. Apontam de Deus para nós. Cantamos sobre a nossa salvação, sobre a vitória que temos sobre a morte, sobre como Deus nos faz superar as dificuldades. Estamos com um discurso único: “Deus me salva, Deus me ajuda, Deus me dá, me dá, me dá”
Esta visão não está errada, mas é incompleta. Nós nos relacionamos com Deus não pelo que Ele pode nos dar e efetivamente nos dá, mas porque não somos nada sem Ele. Nosso relacionamento com Ele é voltado para Ele, e não para nós.
Bob Sjogren & Gerald Robison exploram isso no seu livro “A Teologia do Cachorro e do Gato”:
Existe uma anedota sobre cachorros e gatos que apresenta suas diferenças com perfeição: O cachorro diz: “Você me acaricia, me alimenta, me abriga, me ama, você deve ser Deus.” O gato diz: “Você me acaricia, me alimenta, me abriga, me ama, eu devo ser deus.” Estes traços dos gatos (“Você existe para me servir”) e dos cachorros (“Eu existo para servi-lo”) são quase semelhantes às atitudes teológicas que adotamos em nossa visão de Deus e nosso relacionamento com ele. Devemos, sim, cantar sobre o que Ele nos dá, mas também sobre o que Ele é, sobre a sua santidade, a sua Glória, o seu amor, a sua grandeza, somente para citar alguns atributos de Deus. E sem “pedir” nada em troca.
Com certeza você já ouviu estes cânticos:
“Tua santidade é grande, teu amor, incomparável. Tua Palavra dentro de mim me faz ver que sou Teu” (PIB Curitiba)
“Deus, somente Deus, tudo criou com sua força e poder. Do pequeno ao maior, toda a honra em redor é de Deus, somente Deus” (Phill McHugh)
Consegue ver a diferença?
O número – o individual ou o coletivo
As músicas que cantamos hoje na igreja dão a impressão de que somos a única pessoa salva na face do planeta. Uma visão egoísta do relacionamento com Deus. Eu adoro a Deus, ele cuida de mim. Ninguém mais importa.
É fato que somos salvos individualmente, mas somos salvos para ser um coletivo: a Igreja, o Corpo de Cristo. A música do cristão deve refletir a coletividade, especialmente as que são entoadas durante as celebrações. Qual o sentido de juntarmos 500, 1000, 2000 pessoas em um ambiente para cantar que “Eu vou seguir com fé, com meu Deus eu vou, para a rocha mais alta que eu”. Se nós estamos juntos em um mesmo local, vamos cantar em conjunto, pedir e agradecer como igreja, não como indivíduos.
Veja alguns exemplos. Compare estas músicas
“Enquanto, ó Salvador, teu livro eu ler, meus olhos vem abrir pois (eu) quero ver” Henry Maxwell Wright, CC 137
“A Ti (eu) bendirei prá sempre, em ti (eu) confiarei, Senhor” (Darlene Zschech)
com estas
“Hoje é tempo de louvar a Deus, e em nós agora habita o seu Espírito” (Bruce Borneman)
“Tu estás presente em nós, é por isso que (nós) vimos, prontos para ouvir Tua voz aqui (nós) nos reunimos” (Jorge Camargo)
Marcos Botelho e Calebe Ribeiro fizeram uma divertida brincadeira mudando as letras de algumas músicas do individual para o coletivo. O resultado nos faz pensar.
O brasileiro e o estrangeiro
A internet tem sido, em alguns aspectos, muito boa para o desenvolvimento do cristianismo e da música cristã. Hoje temos acesso facilitado e instantâneo há materiais de todo o mundo. Mas infelizmente as produções estrangeiras caprichadas, resultado de orçamentos e divulgação abundante, junto com um sentimento de inferioridade nacional, nos levam a achar que o que vem de fora é melhor do que o que é produzido aqui.
A música brasileira é admirada em todo o mundo. A diversidade de ritmos, harmonia, a beleza das letras, da poesia. Mas incorretamente classificamos os estilos populares nacionais como música do mundo, enquanto acolhemos de braços abertos a música evangélica estrangeira como sendo mais espiritual, sem observar que, no seu país de origem o que é cantado na igreja tem o mesmo formato da música secular (ou popular, como preferir).
Concordo que é um desafio cantar um cântico ao ritmo da Timbalada, mas não temos problemas em louvar com uma levada pop/rock ao monótono estilo Coldplay.
O fato é que a música cantada hoje nas igrejas não reflete a cultura brasileira. A música brasileira é alegre, tem a nossa poesia, tem diversidade de harmonia. Reflete a beleza na natureza e da criação. Ela não é melhor que a música americana ou inglesa, que com certeza é a mais adequada para a cultura de lá. Mas a celebração nas igrejas brasileiras deve refletir a cultura brasileira.
Veja alguns exemplos:
- A linda poesia de “Doce Nome”, de Gláucia Carvalho
- A alegria contagiante de “Eu vejo a glória”, de Marcos Góes
- A beleza harmônica de “É teu povo”, de Elias Loureiro
- As referências ao Centro Oeste do Brasil em “Quatro estações”, de Kleber Lucas
E não poderia deixar se citar o divertido desafio feito por João Alexandre em sua música “João Brasileiro”, sobre a Bíblia e o Brasil. Vale ouvir: “Imagine só ver um cavaquinho nas mãos do rei Davi…” 😀
É possível ainda um passo mais ousado: Estimule os músicos da sua comunidade a compor canções que tenham “a cara” da sua comunidade, o seu estilo, que estejam associados ao momento da sua igreja. Você vai se surpreender.
Equalizando: todas as frequências são importantes
Quando se faz uma proposta de mudança, sempre existe o risco de uma virada para o extremo oposto. Às vezes isso é necessário quando seu busca, ao final, chegar ao equilíbrio. A proposta não é o extremo, mas o equilíbrio.
Músicas que falam do que Deus nos dá, mas também sobre o que Ele é. Músicas sobre falam sobre a nossa intimidade com Deus, mas que celebram o fato de sermos parte de um corpo. Músicas que tem a cara do Brasil, mas também aprendendo como Deus é celebrado em outras culturas.
Vamos equalizar?
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Cada um destes três temas pode ser discutido exaustivamente. Procurei aqui fazer um texto curto. Mas se quiser continuar a discussão, fique à vontade para usar o espaço abaixo.
Sugestão de leitura adicional: O livro Ser evangélico sem deixar de ser brasileiro, de Gerson Borges.
29 de abril de 2021
Otimo conteudo parabens. Gostei do site. 993122414
5 de agosto de 2016
Um texto para ser lido com seriedade. Concordo plenamente que precisamos equalizar bem o que temos cantado e produzido. O crivo da 1ª pessoa do plural e a finalidade da mensagem não devem ceder ao crivo das preferências pessoais e da força das produções. Todo excesso é perigoso – “australização”, “gospelização tupiniquim”, … – como nos convida o texto, precisamos estar mesmo equalizando bem a música que escolhemos para as nossas liturgias públicas, partindo do princípio que nem sempre o som que ouço no carro e/ou fone deve ser reproduzido nos ajuntamentos coletivos.
7 de agosto de 2016
Pr. Pena, lembrando que o insight das músicas na primeira pessoal foi seu.
5 de agosto de 2016
Davizão, super! Você está ficando cada vez mais refinado neste recurso parabólico-profético. Excelente texto e aplicações. Concordei com tudo e ainda ri bastante. Você tomou conhecimento da pesquisa de mestrado em música sacra no STBSB sobre este assunto? Vale a pena, vou perguntar a ele se posso socializar contigo. Prossiga, eu sempre aqui, fã de carteirinha.
27 de julho de 2016
Parabéns! Mais uma vez um bom texto. Sei que há dificuldade geral quanto à discussão da cultura, talvez ajude, para quem desejar ampliar o tema, conhecer na Missiologia o “Mandato Cultural” e também aquilo que chamamos “Etnodoxologia”.
Obrigado pela reflexão!